quinta-feira, 30 de junho de 2011

A leveza de todos os dias


leve e clara e tenra
a linha  da esperança.  acinzentada
como um tardio e também rubro e maculado amor
desafinado raso cru

: ela morria a cada dia na avenida principal
na leve e clara e tenra idade
com o mar de lodo grudando aos cabelos
crespos cutículas  rins

arvorada e turva a curva da morte
espreitava na  esquina

estranho mas nenhum passante viu:

restos de vida empobrecida
incutida
embolada
em amor tardio

Michelle Portugal

sábado, 25 de junho de 2011

Estrelas


Ficava a noite toda imaginando uma vida diferente, inerte a contemplar a imensidão das possibilidades que o vento trazia em suas asas. Viu, um por um, seus sonhos acordados pelo infortúnio da madrugada. Rogou aos céus que aquela dor passasse e que o colorido se tornasse cinza como cinza a vida se lhe impunha. Convenceu-se de que o vôo é o blefe dos iludidos, e que estrelas são perturbações da existência. Mentiu à própria veia – o último ritmo que embalava o silêncio dos seus medos noturnos. Viu o sol, mas fechou a cortina. Tinha medo da chuva, da luz, do ar limpo a levar folhas inúteis. Amava a própria resignação com amor contrito e, assim, tornara-se prisioneira de um melindre sem fim. Ninguém a podia soltar. Decerto, haveria de ser assim, eternamente. Como todos os outros homens e mulheres que não amam. Como todos os homens que haviam crescido demais, restava condenada ao limite do pequeno grande mundo, seu sóbrio e cinza pecado... que lhe custou uma vida inteira.


Michelle Portugal

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Novamente

Só agora percebo o quanto me custou o meu descuido. A minha precipitação em satisfazer as ausências que me compunham. O esforço meio labiríntico em ser heroína de mim. E eu forjei tudo, desde o primeiro ao último adeus. Queria saber o quanto de mim havia em você  e o quanto de nós lhe bastava. Não quis parecer fraca, nem me aventurar numa inútil procura. Deixei fluir. Mas pequei por te seguir no escuro, por tocar as fendas da tua ferida, tentando entender os porquês do teu longo silêncio. O teu silêncio definitivamente me machucava muito. E então eu fui me perdendo nos vãos que havia entre nós. Como um preso que se consome na espera. Como um solitário mastigando o arrependimento de uma vida que não foi, e podia ser. E assim eu me gastei: por não me bastar. Por querer sempre e  sempre o calor de outras mãos. O olhar que não é meu. O sonho a dois. E fingi que a nossa lábia não me era sabida. E forcei uma cumplicidade que não havia, que nunca houve. E me feri também, mais que a você, mais que a nós. E depois de todas as palavras e gestos e agressões. Depois de todo o circo eu quis me recompor, tentei te pedir perdão, me perdoar. E aí era tarde demais. Todas as minhas especulações desfilavam ávidas, pungentes: eu estava sozinha e ferida,  outra vez.

(Michelle Portugal 23/06/11)

Gota

(Inspirado em ‘Uma Lágrima’, de Igor Buys)



Repousou no cimento
a última prata
lâmina aflita
contorno turvo no azul

caco e neblina
medo e cansaço
expirando
singrando
sem tom

uma nota solta
pendida
sangrando
fulgindo
caindo
no chão

Michelle Portugal 22/06/2011

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Poeminha bobo para ninar alguém

Durma agora, meu bem
que a nuvem há de passar
pesada, levará tuas lágrimas
repouso do teu cansaço

Durma que a noite é breve
e essa dor um bobo sonho
ademais, virão outras nuvens
a plainar na tua aura clara

Há de haver outras dores
noutros dias, outros sóis também
teus anseios voltarão, o teu medo
e tudo o que não te agiganta:

a porta fechada do mundo
a tristeza de cada segundo
o vai-e-vem do infortúnio

Tua imagem clara, leve, santa
roubarão teus inimigos
e tudo será consternação
e tudo dor
e tudo tédio

Mas durma que há de passar a nuvem
que há de passar o sonho
a nuvem, o sonho
hão de passar

 Michelle Portugal 10/06/2011