sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Exercício para ganhar tempo

 

Eu queria nesta tarde chuvosa

nem de alegria ou lamento

um pouco de urbanidade do tempo


e neste dia vinte e seis

outubro quase fim que é

deste ano que apressou o pé


um pouco mais de consideração


Do senhor de todas as horas

Peço todas as demoras

Não tenho pressa não

Eternidade

 

quando eu me for

para além da matéria do mundo

meus olhos se dividirão

entre os caminhos da cidade


e eu verei outros olhos

que hão de nascer

e ascenderei um candelabro

de esperança


e a terra há de soluçar o meu nome

em prantos (os homens também).

e todas as estrelas e planetas

e todos girassóis e vaga-lumes


os senhores hão de anunciar

minha sina


os tolos assombrados temerão


mas de todo isto não será ruim

pois que a vida e a morte

os deuses e os homens

morrerão em mim

Sobre religião, feminismo e liberdade (Michelle Portugal)

Há sempre um tom orgulhoso nas falas de muitas pessoas que se declaram 'não religiosas', mormente nos dias atuais em que o discurso em voga é de quebra de paradigmas morais. Sem entrar no mérito da religião propriamente dita, lembro-me de um texto de Rubem Alves, no qual ele diz que ‘Ter uma religião é falar as palavras sagradas daquela religião e acreditar nelas. As religiões se distinguem e se separam: pelas diferenças das palavras que usam para se referir ao sagrado’.

O sagrado a que Rubem Alves se refere, obviamente, é o conjunto de signos, interpretações e crenças imanentes do ser humano. E ele fala especificamente da religião em sentido estrito. Entretanto, a interpretação pode ser ampliada.

Se sagrado é aquilo que o homem considera superior a si próprio, visto que dotado de características nobres e incorruptíveis; ao qual ele oferece um altar, logo, o desejo humano de sacralização não se restringe à religião: há nãos religiosos que vivem em profundo sentimento religioso por aquilo que consideram ‘sagrado’.

Surge então a necessidade de nomear este “sagrado”, tornando-o objeto passível de ser vendido e apregoado pelas praças e ruas do mundo real. Logo, só é digno quem reitera as palavras sagradas. Quem as profana deve ser condenado a algum inferno eterno de fogo e enxofre.

É assim com o feminismo em voga: existem signos próprios desse movimento. Palavras que devem ser repetidas e compartilhadas até se tornarem verdades incontestes. E ai de quem contesta! Mesmo que a premissa da crítica seja fundada em argumentos honestos e céticos, o crítico deve ser irremediavelmente excomungado, visto que ele é o próprio demônio.

É assim com qualquer ideologia demagógica que repete freneticamente as palavras mágicas “democracia”, “igualdade”, “justiça”, como se seus significados – dotados de multiplicidade de sentidos – fossem a descoberta de seus fiéis. São os objetos sagrados e exclusivos do “povo escolhido”, utilizados como ferramenta de manipulação.

Daí deriva o culto ao politicamente correto: não basta ser, tem que PARECER que é.

Não basta ser mulher autônoma: você tem que afirmar sua autonomia por meio da defesa irrestrita das pautas defendidas pelo movimento, caso contrário, você no mínimo será uma pessoa com convicções suspeitas. Uma ameaça à irmandade. Uma mulher que precisa ser posta em seu devido lugar. Se você é mulher e contra o aborto, você só pode ser a filha de satã, mesmo que grande parte (quiçá a maioria) dos bebês abortados sejam meninas.

Não basta defender igualdade perante a lei: você tem que parecer que defende essa igualdade por meio do uso dos signos apropriados para tal defesa: os famigerados jargões carregados de demagogia.

Rubem Alves tinha razão. Só não tem razão quem ousa discordar e corajosamente se posicionar do outro lado da ponte. Estes são os loucos, extremistas, os hereges. Não há perdão que os livrará do fogo do inferno.






segunda-feira, 12 de junho de 2017

Intento

Essa palavra incompreendida, altiva
Morando entre as minhas vísceras
É uma faísca alucinante, acesa
Minha desventura presa
à garganta

Esse intento que morre à míngua
Repousa entre o pouso e o salto
É uma palavra bendita, inominável,
Perturbadoramente viva no meu peito

Seu plano mirabolante de fuga:
um salto para fora do mundo.






Um poema


Eu busco um sentido
Perdido entre meus cílios
E uma estrela de cor violeta
E uma flauta

E busco uma alegria
Em fogos de artifício
E um lago esverdeado
E uma canção de paz

Atrás das cortinas azuis
Nos bolsos das calças azuis
No céu cinzento um azul
De acalmar

Um poema


Tem um poema no meu peito
Escondido, ninguém o viu
Tem me deixado sem jeito
Inquieto e vil

Tem um poema no meu peito
Um rascunho estudantil
Truncado e com trejeito
De poema varonil

Me consome o corpo, a mente
Feito vela em seu pavio
E eu suspeito estar doente

Como um velho sobre o leito
Pois um poema intermitente
Vive e morre no meu peito

O lirismo, este senhor de ombros encurvados
Já não toca no meu mp3
O lirismo é um louco mal amado
Com seus bordões ultrapassados
Com sua velha embriaguez

Este senhor feio e malcheiroso
Sem endereço ou sobrenome
Não tá na lista do meu smartphone
Entre os contatos que eu salvei

Mas eu não sou de baixo tom
E minhas fotos no Leblon
Eu juro, compartilhei

Um poema por dia


Escrever diariamente um poema
Com a solenidade necessária
Exige mais que um bom esquema
Quem não planeja se atrapalha

Eu não sou moça de novena
Mas não me arrisco nessa praia
Já convivo com o meu dilema:
Usar short ou minissaia

Mas já aviso de antemão
Para reforçar a ideia passada
Que brinquei por pura ousadia

Há que se ter um plano mui bom
Pra não se perder na empreitada
De escrever um poema por dia.

Despedida


Naquela noite, acomodou a grande mala de cor caramelo na cômoda velha. Escolheu uma roupa quente para dormir e, após utilizar o chuveiro, deitou-se na cama de casal cujo cheiro não representava exatamente o aconchego que julgava merecer. Viu a chuva escorrer pela janela do pequeno quarto de hotel e, a despeito do pouco conforto e mau cheiro, sentiu-se ligeiramente bem. No dia seguinte, haveria de partir logo cedo. E o fez. No caminho para a pequena cidade remoeu as duras palavras de Camila: “preciso de um tempo só pra mim”; lembrou seu olhar de desprezo e pouca consideração por tudo o que já viveram. A moça o expulsara de sua vida abruptamente, com a crueldade legítima das mulheres que se bastam. Não a perdoaria, não mais. Acelerou o carro para aproximar a despedida. Haveria de vê-la pela última vez na cidade aonde se conheceram. Apegou-se ao simbolismo do lugar para então seguir livre, começar uma nova vida sem ela. Ao vê-la, mais tarde, não encontrou palavras. Ficou mudo. Sentiu um misto de raiva e ternura. Despediu-se e não olhou para trás. Saiu da estrada de terra levando consigo a mala caramelo vazia. O coração vazio. Na volta, mais adiante, hospedou-se no mesmo hotel barato. Acomodou a grande mala de cor caramelo na cômoda velha e tomou um banho para livrar-se do cheiro de sua ex. Não queria mais lembrá-la, não mais.

Quanto seres
Um único ser
É capaz de abrigar?

Uma face oculta
De esteta
Um mundo secreto
De poeta

Quantos universos
Um único ser
É capaz de criar?

No teu olhar arguto
De arcano
Eis o multiverso:
Soberano

Eternidade


quando eu me for
para além da matéria do mundo
meus olhos se dividirão
entre os caminhos da cidade

e eu verei outros olhos
que hão de nascer
e ascenderei um candelabro
de esperança

e a terra há de soluçar o meu nome
em prantos (os homens também).
e todas as estrelas e planetas
e todos girassóis e vaga-lumes

os senhores hão de anunciar
minha sina

os tolos assombrados temerão

mas de todo isto não será ruim
pois que a vida e a morte
os deuses e os homens
morrerão em mim

Exercício para ganhar tempo


Eu queria nesta tarde chuvosa
nem de alegria ou lamento
um pouco de urbanidade do tempo
e neste dia vinte e seis
outubro quase fim que é
deste ano que apressou o pé
um pouco mais de consideração
Do senhor de todas as horas
Peço todas as demoras
Não tenho pressa não

Contraproposta


meus ossos não serão zombados em palanque
nem minha cabeça servida em bandeja
vou embora dessa vida com fineza
quem nela não me quer que não me arranque
com socos pontapés e infantaria
não vale esse presépio o baixo custo
de mais e mais um dia!

quem nela não me quer que só me arranque
com a minha prévia autorização!
que vou embora sem almejar fineza:
a cabeça posta na mesa
ao lado do coração

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Ela brincava com os dedos perdida em algum pensamento desimportante. Não que se pudesse entrar em sua mente e se saber o que se entranhava por ali. Nem que se fosse possível avaliar a exatidão de suas prioridades, a ponto de se calcular o que lhe importava ou não. Ela tinha um jeito meio prisioneiro de sentir: se ria, não ria. Não chorava, se chorava. Não que houvesse algum meio de se saber se guardava no peito tempestade ou pouca brisa. Mas, enquanto o vento fazia o seu curso, enquanto as mulheres com olhar cansado encurvavam o corpo de frio, e os passantes pisavam a calçada molhada... algo dela, e estritamente dela, ficava no ar. Eu apanhava com as mãos frias, disfarçando. Com um esforço quase místico. Ela doía por dentro. E eu sabia com exatidão, talvez por me doer também. Vivíamos no mesmo mundo, eu e ela, respirando a fumaça indiscreta da solidão. Sentei à sua frente inquieto. E não pelo frio ou o cinza do céu. Nem pelos cachorros solitários da praça. Sentei à sua frente. Ninguém nos compreendia. Ninguém, entre pernas e olhares apressados.
Ela tinha o olhar ensimesmado. Olhava talvez para dentro de si. Fazendo talvez as perguntas que eu fazia. Não que se pudesse investigar as possibilidades do seu mundo, nem que eu ousasse averiguar com precisão os seus anseios. Eu lhe era um desconhecido. Ela me era uma estranha. E não havia entre nós qualquer comunicação que pudesse revelar o espírito. Mas eu sabia. Eu sabia muito sobre ela. Aquela estranha. Talvez a conhecesse de alguma outra vida. Quem saberá? Depois de algum tempo ela levantou e se foi, levando parte de mim. E eu fiquei com o frio e a chuva, respirando a fumaça indiscreta da solidão.

Juízo

Os deuses me negaram o paraíso
Quando, no afã da minha criação
Em meu peito, alma, coração
Deitaram o peso de um juízo

E eu, crescido assim, e com isso
Acabrunhei-me em contemplação
Caminhando, pois, na contramão
Do andar de quem não pensa nisso

Nisso de ser gente e já não ser
Pois que ‘o homem é cadáver adiado’ *
Mas se crê como ente soberano

E de pensar, assim, chego a doer
Pois, torrão no universo estrelado
Sou humano, nada mais que humano

(* O homem é um cadáver adiado - Fernando Pessoa)

Incandescente

Meu peito não é feito de aço
Metal superaquecido no fogo
Nem é de cobre a minha carne
Ou de titânio o meu sangue

Meu corpo, que não é feito de estrela
Nem carrega no ventre um semideus
É frágil feito a flor.

E se me sai dos olhos um fogo qualquer
(Minha ira incontrolável-incandescente)
É que sou como toda essa gente
E é de carne o meu coração.

sexta-feira, 5 de junho de 2015



Todas essas inutilidades que aí estão
em evidência
São como anestesia no corpo da gente.
E eu, que ando fatigado e demente,
e que a tudo denomino inútil
(sou comum e sou calado
e chego a pensar que sou fútil).

Todas essas inutilidades aí estão
“atravancando o meu caminho”
Quão vis afetações
Quão pobre passarinho

Todas um dia Passarão?
Hei de firmar o compromisso:
Elas passarão
E não se fala mais nisso.

Michelle Portugal

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Século XXI

O boneco manequim não te viu
Nem te viu o homem de bigode na praça
mudo em sua rigidez de estátua

O trapezista não te viu, nem te viu o porteiro
a senhora de preto, o vizinho de cinza
o cão não te viu

e você caminhou suas ruas
sonhou os seus sonhos
deitou e dormiu

(Michelle Portugal - 16/08/2013)

terça-feira, 21 de maio de 2013

Encontros


E então eles disseram coisas que pensavam – porque era certo pensar daquele jeito. Eles se perderam quando mais queriam se encontrar. Essa mania chata de buscar explicação, nomear o que se sente, sempre nos leva o que há de mais belo. Ele via nela qualquer coisa como uma estrela em um céu de uma estrela só. Ela via nele qualquer coisa como um raio num país de só escuridão. Ele não era drogado ou ladrão. E tinha medo. Ela Não era freira ou filha única, de um pai doente ou coisa assim. Mas algo no mundo, algo indiferente e sóbrio, os adormeceu para sempre.

Ela tinha medo também. Não era, pois, amor. Era nada demais. Só uma coisinha que fazia doer, doer sem fim. Porque era certo agir daquele jeito.’eu sinto seu cheiro quando faço nada’, disse ele. ‘Eu tenho o teu gosto na boca’, ela confessou.


Era um nada que era bom. Era tão bom que sentiram medo. Ele disse um dia ‘ adeus’. Ela nada disse. Despediram-se sem dramas. Com o louvor de quem nada sente. Esperando que se revelassem, mas já cansados.

Num dia, então, janeiro ou abril, perceberam-se ausentes. 

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013


Os homens criam nomes, os nomes aprisionam o olhar...

(Michelle Portugal - 31/01/2013)