sexta-feira, 15 de julho de 2011

A Mulher Invisível

Quarta feira pesada. Escura. Nem é noite ainda e eu já ouso arriscar que o dia acabou. Não porque falta luz. Não pelo silêncio. Talvez pela densidade dos olhares. Eles se cruzam rapidamente. Os de meu pai, numa resignação total, os de Solange - a mãe que eu jamais tive - aviltados. E eu não ouso falar nada. Não arrisco. Sou obstinada em minhas decisões.

A casa grande antecipa ansiedades, revigora medos, mastiga mentiras. Móveis rústicos e muito pó na sala inóspita, de quadros igualmente inóspitos, tolamente dispostos. Corajosos demais a exibirem ruazinhas de terra, mulheres de vestidos brancos com trouxas sobre a cabeça. Tédio. Esmiúço o meu tédio.

Não me lembro exatamente de como começou o dia, mas a percepção de tê-lo sabido cinza me assombrou no café da manhã. O cinza de que lhes falo é o cinza-chumbo. Não há tom algum, mas há o peso da cor. A casa amanheceu vazia e turva.

Preciso falar de Marília. Mulher de meia idade. Quase sem sorriso. É o que chamo de pessoa morta, ou que nunca arriscou nascer. Ela é invisível. Não fala, quando muito, o essencial. Não reclama e nada lhe parece doer, mas eu suponho que no fundo no fundo o mundo lhe pesa muito e que a vida, de uma forma ou de outra, lhe nega dignidade.

Eu sinto pena dela, e isso é tudo. Arruma a minha desordem. É uma boa arrumadeira, e isso é tudo também.

Lembro-me de tê-la visto entrar no quarto, cabeça baixa. Humilhada como sempre. Não me recordo de tê-la visto sair. Não importa. Talvez tenha decidido ir embora pra destino algum. Ou ajoelhado implorando a misericórdia divina. Talvez tenha morrido, nunca se sabe. Mas não ouso perguntar nada.

Eles se entreolham e abaixam a cabeça. Ainda é cedo demais e já escureceu. O cinza-chumbo engravida o ar, pesa as palavras entrecortadas e os meus ombros. Fico muda.

Michelle Portugal
14/07/2011

2 comentários:

  1. Que coisa linda Michelle! Este conto, que eu ainda não conhecia, é de uma profundidade admirável, um encanto em termos de imagens bem construídas, além de - marca registrada sua - primorosamente escrito.

    Eu sou um fãzão... Não, esta palavra ficou muito feia: Um grande fã seu!

    Beijo!

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  2. Não sabe o quanto me deixa feliz, Mailton. Abração... de fã!

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